
A FESTA
Jailson Santos
Amanheceu no
Conjunto dos Pássaros. Jeff vai à casa de seus amigos anunciar o espetáculo de
uma banda que estava em ascensão entre os jovens. Talles, João e André, três
primos, adoraram a programação e logo trataram de sair de casa para combinar
como seria a noite entre os quatro. Sábado, o dia ensolarado, bom para sair,
nenhum sinal de chuva. Reuniram-se na frente do prédio Cerejeira, ponto de
encontro de todos que moravam na Rua B do Conjunto e começaram a discutir como fariam
para chegar até o local da apresentação das bandas. Fizeram também o cálculo de
quanto gastariam e de quanto tinham no bolso.
Talles não tinha
dinheiro, mas prometeu pedir cinco reais ao pai; João tinha uma reserva de dez;
Jeff com sete e André tinha um pouco mais que dez. Fizeram o cálculo
assessorado por Talles que estudava engenharia. Com o dinheiro, trataram logo
de comprar dois litros de conhaque e algumas carteiras de cigarro. Só Talles
fumava com freqüência, João e Jeff ainda não eram fumantes assumidos porque
dedicavam seu tempo à musculação; André fumava pouco, mas quando bebia... Era
uma verdadeira chaminé.
Foram ao
depósito de bebidas com o pouco dinheiro que tinham para passar a noite bebendo
e fumando. Andaram até a Estrada do Macaco onde já eram clientes fiés pela
compra de conhaque. Empolgados e conversando durante a caminhada, Talles falava
sobre o Cordel. Uma banda que fazia um som diferente com recital de poesias.
– O som da banda
é perfeito, cara. Vai ser muito bom. E outra, só cola gata, a galera
alternativa.
Jeff prestava
atenção e analisava o que estava sendo dito a respeito do público. A festa
seria no Espaço Bazar montado na Calçada bem em frente ao mar. Realmente seria
muito bom. No cais, vista para o mar, apresentação de bandas boas. O que deixou
Jeff pensativo foi o local. Como já estudou na Cidade Baixa, conhecia bem
aquela localidade, muito pivete, mendigo, usuários de drogas e ele se
questionou: Será que realmente vai dar gata?
Bom, esse
questionamento não deixou Jeff perder a empolgação, afinal, seus amigos
elevaram seu bom humor e todos ficaram ansiosos para ir. Voltaram para casa com
os litros de conhaque e quatro carteiras de Hollywood. Pararam novamente na
esquina e continuaram conversando. Voltaram ao assunto do dinheiro, já que a
bebida e o cigarro consumiu uma boa parte da grana. Talles não perdeu a
empolgação e sugeriu ouvir toda a apresentação das bandas, na porta do Bazar,
bebendo conhaque. Todos concordaram, o que não podia se pensar naquele momento
era perder o espetáculo. Jeff empolgadíssimo para curtir o som da banda Scambo,
era fã da banda, estava todo domingo com R$ 1,99, o valor da entrada no anexo
bar do Rio Vermelho.
A prosa durou
quase a manhã inteira na esquina do conjunto. Despediram-se e foram pra casa
almoçar, marcando um novo encontro.
– Vou nessa,
man, até 18 horas pra descer pro show, disse Jeff se despedindo dos amigos.
Impaciente e
inquieto, Jeff passou a tarde ligando para os amigos, empolgado, discutindo,
imaginando como seria aquela noite na porta do espetáculo, bebendo conhaque e
fumando cigarro.
A hora passou e
finalmente os gritos na rua e o toque no interfone. O primeiro a sair foi
Talles, gritando Jeff na porta do prédio, todo arrumado, ao seu estilo, sem
passar o ferro na roupa. Uma bermuda folgada estilo skatista, uma camiseta mal
passada e seu tênis guerreiro; onde fosse, aquele tênis estava no pé. Já com o
cigarro no dedo, dá pressa a Jeff para sair, estava ansioso. Logo depois
aparece João, o mais social, mais tranquilo, com sua calça Jeans colada e uma
camiseta para mostrar os braços fortes de tanta musculação. Junto com ele chega
André, quase 1.95 de altura, desengonçado, mas ainda com a pureza do interior.
Deixou a vida no campo a fim de estudar para o vestibular, e foi aprovado.
Juntos
caminharam para o ponto de ônibus, rindo, felizes com o momento; ir para o
Bazar escutar Cordel e Scambo do lado de fora bebendo conhaque e fumando
cigarro.
O ônibus ideal
seria São Joaquim, mas essa linha de ônibus só tinha carros velhos. A empresa
só disponibilizava veículos velhos para fazer a viagem Tancredo Neves/São
Joaquim. Isso pouco importava para os amigos se a intenção era ouvir do lado de
fora as bandas tocarem seus maiores sucessos.
Na viagem, o
silêncio. Jeff observava o trajeto; Estrada das Barreiras, Avenida Silveira
Martins, Ladeira do Cabula, San Martins, Largo do Tanque, entrada do Uruguai,
São Joaquim, Calçada. Chegamos, diz André com brilho nos olhos. Apesar de
adotar um estilo de vida alternativo e morar numa cidade da Chapada Diamantina,
ele não tem frequentemente acesso a bandas como Scambo e Cordel, pouco
frequentes naquela região.
Descendo do
ônibus, o lugar é sinistro, na Calçada, 19 horas, tudo parado, sem muita
movimentação. Moradores de rua deitados no chão em cima de papelões, sujos,
bêbados, drogados. O cenário não era dos melhores, mas as vibrações batiam em
favor das bandas que em poucos minutos iriam mostrar sua qualidade musical. Um
litro de conhaque já tinha sido degustado no silêncio da viagem do ônibus. Já
estavam com o calor da noite no sangue. Talles, o mais experiente, sugeriu que
com o dinheiro que restou no bolso comprasse alguns vinhos, já que apenas 1 litro de conhaque não
daria para passar a noite. Acataram a opinião de Talles.
Deram uma volta
na frente do espaço Bazar, o movimento ainda era pequeno. Iam chegando de
poucos em poucos.
– Vamos dar uma
volta, procurar alguma barraca para comprar vinho, disse Talles. Vamos! disse
João em coro com André e Jeff. Hoje eu quero beber.
Foram andando no
sentido Largo dos Mares até encontrarem uma barraca. Logo à frente, um bar
aberto, fachada pintada de azul com paredes sujas. Um bar muito simples, com
apenas uma mesa e quatro cadeiras enferrujadas. Um balcão gradeado até o teto e
um senhor de pele negra, barba grisalha e aparência de sofrimento.
Pergunta João:
Tem vinho, meu véi?
– Tem, sim, São
Jorge, disse o velho sem muitas palavras.
Juntaram os
quatro, coçaram os bolsos pegando o que cada um tinha. Com a arrecadação dos
trocados, deu para comprar quatro litros de vinho somando com mais um litro de
conhaque. João estava atiçado, com vontade de fazer daquela noite uma de suas
melhores saídas. Em passos longos retornaram para a porta do Bazar e começaram
a beber e fumar.
Quem freqüenta
muito as apresentações de bandas alternativas, sabe que é comum encontrar
conhecidos de outras festas. Na porta da casa de espetáculos Jeff encontra um
conhecido, e lhe oferece conhaque e vinho. Em poucos minutos de conversa, Jeff
ganhou uma cortesia de entrada. Pegou o ingresso e se despediu de seu colega.
Como só tinha ganho uma cortesia, não faria muita diferença, porque três de
seus amigos iriam ficar do lado de fora. Jeff não quis entrar e chegaram em um
acordo. Vender o ingresso e comprar mais vinho. O problema seria voltar àquele
bar.
A indecisão
tomou conta do grupo e Jeff decide entrar para ver o movimento dentro do Bazar
e não perder o ingresso. Todos concordaram. Entrou, assistiu a apresentação de
Cordel, sem ninguém. De repente aparece um artista conhecido no meio do
público, conversando com alguns amigos. Um desses amigos chegou até Jeff,
talvez tenha se sensibilizado em vê-lo sozinho e lhe ofereceu uma cerveja.
– Vejo você
sempre em festas alternativas. E aí, quer uma cerveja? Tenho algumas fichas que
ganhei.
– Não! Estou só
dando um tempo aqui, vou ter que sair.
– Por quê?
– Meus amigos
ficaram do lado de fora. Não temos dinheiro para comprar os ingressos.
– Você está com
quantos amigos?
– Três.
– Vamos lá fora,
quero ver eles.
Então caminhou
até o portão de entrada com aquela alma caridosa e o apresentou para os amigos.
Do nada, o rapaz puxou alguns ingressos do bolso e deu um para cada. Talles,
André e João não estavam acreditando no que tinha acabado de acontecer. Era
tudo que eles queriam; assistir o show de perto. Agradeceram com o sorriso
colado na orelha e entraram cheios de alegria. Com olhar atento, os quatro,
observavam cada momento, cada pessoa, cada lugar. Era a primeira vez que
entravam no espaço Bazar.
Curtiram a festa,
os quatro juntos. Não tinham dinheiro para beber, o jeito foi colocar dois
litros de vinho dentro da calça folgada de André. Com quase dois metros de
altura, daria para esconder até um boi. Alguns minutos passaram fazendo
companhia ao rapaz que cedeu os ingressos, ficaram impressionados com a
presença do artista próximo do grupo. Logo se despediram e foram para outro
lugar.
Bebendo vinho,
pulando, gritando, curtindo a vibe, a
energia da noite até que a última banda tocou. Já tinha ultrapassado a meia noite
e nenhum dos quatro tinha prestado atenção ao horário do último ônibus de volta
para casa. A festa acabou e muita gente ainda ficou no lugar, conversando,
fumando cigarro, bebendo, paquerando. Quando resolveram ir embora, que deram
conta da realidade, já era 1 hora da manhã e o pânico tomou conta dos amigos.
– Não tem mais
ônibus, o último seria 11h40, disse Talles.
– E agora? Disse
Jeff.
– Vamos ligar
para meu pai, João sugeriu.
– Não, tirar
família da cama essa hora para buscar a gente que está em festa! disse André, o
mais sereno.
Foram andando em
direção ao ponto, no sentido Largo dos Mares. O breu, o silêncio, a energia da
noite, os mendigos, e sentaram no ponto. Só os quatro e mais ninguém. Jeff
questionou:
– Vamos ficar
aqui esperando ônibus essa hora?
– Vamos fazer o
quê? Não temos dinheiro! disse Talles. Vamos esperar amanhecer aqui e no
primeiro ônibus vamos embora.
Jeff se assustou
com a idéia, João e André arregalaram os olhos. Observaram ao redor e nada
havia de ameaçador. Só a escuridão, postes quebrados, a fedentina da rua, os
mendigos. Jeff deu uma idéia:
– Vamos para
casa andando, é melhor que ficar parado em um único lugar, correndo risco de
ser assaltado. Aqui é muito perigoso, muitos marginais usando drogas. Vamos andando
e se passar um pernoitão no meio do caminho a gente pega.
Todos pararam,
pensaram e questionaram a distância. Mas todos concordaram em não ficar parado
ali, naquele ponto deserto, em um bairro perigoso e foram andando no sentido
São Joaquim. A discussão no caminho foi o trajeto para chegar até a ladeira do
Cabula. Ir pelo Comércio seria muito perigoso, passar o túnel, Aquidabã e Sete
Portas então seria pior. Jeff sabia um itinerário que cortava caminho e já saía
na Baixa de Quintas. Seguiram todos o caminho.
Na frente da
feira, quatro homens jogando dominó começaram a discutir. Um deles puxou uma
garrafa e atirou na cabeça de seu rival que caiu no chão e a confusão começou.
A gritaria e agressões fizeram os amigos terem medo da noite. Apressaram os
passos e subiram uma ladeira que dá acesso ao Barbalho, já saindo na Estrada da
Rainha.
Andaram pela
Estrada da Rainha e lá na frente Jeff avistou dois homens sentados no canto da
rua, em um lugar escuro, só se via o reflexo e a fumaça do cigarro. Os dois
levantaram-se, um deles atravessou a rua, Jeff chamou atenção dos amigos:
– prestem
atenção. Ali tem dois caras e um deles está atravessando a rua.
– André, grande,
disse: que nada, maluco. Aqui tem quatro, lá só tem dois.
– Calma, André,
a gente não pode contra arma. Uma hora dessas sentado na rua, bem no escuro, só
pode ser marginal.
Saíram do canto
da rua e começaram a andar no meio da pista, idéia de João. Chegando perto, os
homens, com olhares nervosos deixaram passar os amigos, só disseram uma piada:
“Cuidado com a área do Zoto!” Foram andando sem olhar para trás e dobraram a
esquina da Baixa de Quintas. Logo em seguida já estavam nos Dois Leões sentido
Rótula do Abacaxi. No meio do caminho, os quatro apreensivos, com medo, deram
vontade de fumar para acalmar os ânimos depois do susto que levaram. O cigarro
tinha acabado e só restava 50 centavos no bolso de Talles.
No meio do
caminho, um bar, com apenas uma janela aberta e alguns bêbados ingerindo
cachaça. Todos foram juntos ao bar, na chegada a recepção; olhares famintos,
sangue nos olhos, o semblante possuído, os gestos lentos. Pediram um único
cigarro e continuaram a caminhada. Dividiram um cigarro para os quatro. Cada um
dava uma tragada. Chegaram à Rótula do Abacaxi e finalmente na tão esperada
ladeira do Cabula. Subiram a ladeira, já na Avenida Silveira Martins viram
passar um ônibus da manutenção de alguma empresa de transporte coletivo. Talles
gritou, o motorista parou e deu carona para os quatro amigos até a entrada da
Mata Escura, a alguns metros do Conjunto dos Pássaros. Chegaram em casa, e tudo
que passou foi motivo de risos para querer mais. Deram risadas, apertaram as
mãos e disseram: outro dia tem mais.