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segunda-feira, 24 de maio de 2010

A Festa




A FESTA



Jailson Santos

Amanheceu no Conjunto dos Pássaros. Jeff vai à casa de seus amigos anunciar o espetáculo de uma banda que estava em ascensão entre os jovens. Talles, João e André, três primos, adoraram a programação e logo trataram de sair de casa para combinar como seria a noite entre os quatro. Sábado, o dia ensolarado, bom para sair, nenhum sinal de chuva. Reuniram-se na frente do prédio Cerejeira, ponto de encontro de todos que moravam na Rua B do Conjunto e começaram a discutir como fariam para chegar até o local da apresentação das bandas. Fizeram também o cálculo de quanto gastariam e de quanto tinham no bolso.

Talles não tinha dinheiro, mas prometeu pedir cinco reais ao pai; João tinha uma reserva de dez; Jeff com sete e André tinha um pouco mais que dez. Fizeram o cálculo assessorado por Talles que estudava engenharia. Com o dinheiro, trataram logo de comprar dois litros de conhaque e algumas carteiras de cigarro. Só Talles fumava com freqüência, João e Jeff ainda não eram fumantes assumidos porque dedicavam seu tempo à musculação; André fumava pouco, mas quando bebia... Era uma verdadeira chaminé.

Foram ao depósito de bebidas com o pouco dinheiro que tinham para passar a noite bebendo e fumando. Andaram até a Estrada do Macaco onde já eram clientes fiés pela compra de conhaque. Empolgados e conversando durante a caminhada, Talles falava sobre o Cordel. Uma banda que fazia um som diferente com recital de poesias.

– O som da banda é perfeito, cara. Vai ser muito bom. E outra, só cola gata, a galera alternativa.

Jeff prestava atenção e analisava o que estava sendo dito a respeito do público. A festa seria no Espaço Bazar montado na Calçada bem em frente ao mar. Realmente seria muito bom. No cais, vista para o mar, apresentação de bandas boas. O que deixou Jeff pensativo foi o local. Como já estudou na Cidade Baixa, conhecia bem aquela localidade, muito pivete, mendigo, usuários de drogas e ele se questionou: Será que realmente vai dar gata?

Bom, esse questionamento não deixou Jeff perder a empolgação, afinal, seus amigos elevaram seu bom humor e todos ficaram ansiosos para ir. Voltaram para casa com os litros de conhaque e quatro carteiras de Hollywood. Pararam novamente na esquina e continuaram conversando. Voltaram ao assunto do dinheiro, já que a bebida e o cigarro consumiu uma boa parte da grana. Talles não perdeu a empolgação e sugeriu ouvir toda a apresentação das bandas, na porta do Bazar, bebendo conhaque. Todos concordaram, o que não podia se pensar naquele momento era perder o espetáculo. Jeff empolgadíssimo para curtir o som da banda Scambo, era fã da banda, estava todo domingo com R$ 1,99, o valor da entrada no anexo bar do Rio Vermelho.

A prosa durou quase a manhã inteira na esquina do conjunto. Despediram-se e foram pra casa almoçar, marcando um novo encontro.

– Vou nessa, man, até 18 horas pra descer pro show, disse Jeff se despedindo dos amigos.

Impaciente e inquieto, Jeff passou a tarde ligando para os amigos, empolgado, discutindo, imaginando como seria aquela noite na porta do espetáculo, bebendo conhaque e fumando cigarro.

A hora passou e finalmente os gritos na rua e o toque no interfone. O primeiro a sair foi Talles, gritando Jeff na porta do prédio, todo arrumado, ao seu estilo, sem passar o ferro na roupa. Uma bermuda folgada estilo skatista, uma camiseta mal passada e seu tênis guerreiro; onde fosse, aquele tênis estava no pé. Já com o cigarro no dedo, dá pressa a Jeff para sair, estava ansioso. Logo depois aparece João, o mais social, mais tranquilo, com sua calça Jeans colada e uma camiseta para mostrar os braços fortes de tanta musculação. Junto com ele chega André, quase 1.95 de altura, desengonçado, mas ainda com a pureza do interior. Deixou a vida no campo a fim de estudar para o vestibular, e foi aprovado.

Juntos caminharam para o ponto de ônibus, rindo, felizes com o momento; ir para o Bazar escutar Cordel e Scambo do lado de fora bebendo conhaque e fumando cigarro.

O ônibus ideal seria São Joaquim, mas essa linha de ônibus só tinha carros velhos. A empresa só disponibilizava veículos velhos para fazer a viagem Tancredo Neves/São Joaquim. Isso pouco importava para os amigos se a intenção era ouvir do lado de fora as bandas tocarem seus maiores sucessos.

Na viagem, o silêncio. Jeff observava o trajeto; Estrada das Barreiras, Avenida Silveira Martins, Ladeira do Cabula, San Martins, Largo do Tanque, entrada do Uruguai, São Joaquim, Calçada. Chegamos, diz André com brilho nos olhos. Apesar de adotar um estilo de vida alternativo e morar numa cidade da Chapada Diamantina, ele não tem frequentemente acesso a bandas como Scambo e Cordel, pouco frequentes naquela região.

Descendo do ônibus, o lugar é sinistro, na Calçada, 19 horas, tudo parado, sem muita movimentação. Moradores de rua deitados no chão em cima de papelões, sujos, bêbados, drogados. O cenário não era dos melhores, mas as vibrações batiam em favor das bandas que em poucos minutos iriam mostrar sua qualidade musical. Um litro de conhaque já tinha sido degustado no silêncio da viagem do ônibus. Já estavam com o calor da noite no sangue. Talles, o mais experiente, sugeriu que com o dinheiro que restou no bolso comprasse alguns vinhos, já que apenas 1 litro de conhaque não daria para passar a noite. Acataram a opinião de Talles.

Deram uma volta na frente do espaço Bazar, o movimento ainda era pequeno. Iam chegando de poucos em poucos.

– Vamos dar uma volta, procurar alguma barraca para comprar vinho, disse Talles. Vamos! disse João em coro com André e Jeff. Hoje eu quero beber.

Foram andando no sentido Largo dos Mares até encontrarem uma barraca. Logo à frente, um bar aberto, fachada pintada de azul com paredes sujas. Um bar muito simples, com apenas uma mesa e quatro cadeiras enferrujadas. Um balcão gradeado até o teto e um senhor de pele negra, barba grisalha e aparência de sofrimento.

Pergunta João: Tem vinho, meu véi?

– Tem, sim, São Jorge, disse o velho sem muitas palavras.

Juntaram os quatro, coçaram os bolsos pegando o que cada um tinha. Com a arrecadação dos trocados, deu para comprar quatro litros de vinho somando com mais um litro de conhaque. João estava atiçado, com vontade de fazer daquela noite uma de suas melhores saídas. Em passos longos retornaram para a porta do Bazar e começaram a beber e fumar.

Quem freqüenta muito as apresentações de bandas alternativas, sabe que é comum encontrar conhecidos de outras festas. Na porta da casa de espetáculos Jeff encontra um conhecido, e lhe oferece conhaque e vinho. Em poucos minutos de conversa, Jeff ganhou uma cortesia de entrada. Pegou o ingresso e se despediu de seu colega. Como só tinha ganho uma cortesia, não faria muita diferença, porque três de seus amigos iriam ficar do lado de fora. Jeff não quis entrar e chegaram em um acordo. Vender o ingresso e comprar mais vinho. O problema seria voltar àquele bar.

A indecisão tomou conta do grupo e Jeff decide entrar para ver o movimento dentro do Bazar e não perder o ingresso. Todos concordaram. Entrou, assistiu a apresentação de Cordel, sem ninguém. De repente aparece um artista conhecido no meio do público, conversando com alguns amigos. Um desses amigos chegou até Jeff, talvez tenha se sensibilizado em vê-lo sozinho e lhe ofereceu uma cerveja.

– Vejo você sempre em festas alternativas. E aí, quer uma cerveja? Tenho algumas fichas que ganhei.

– Não! Estou só dando um tempo aqui, vou ter que sair.

– Por quê?

– Meus amigos ficaram do lado de fora. Não temos dinheiro para comprar os ingressos.

– Você está com quantos amigos?

– Três.

– Vamos lá fora, quero ver eles.

Então caminhou até o portão de entrada com aquela alma caridosa e o apresentou para os amigos. Do nada, o rapaz puxou alguns ingressos do bolso e deu um para cada. Talles, André e João não estavam acreditando no que tinha acabado de acontecer. Era tudo que eles queriam; assistir o show de perto. Agradeceram com o sorriso colado na orelha e entraram cheios de alegria. Com olhar atento, os quatro, observavam cada momento, cada pessoa, cada lugar. Era a primeira vez que entravam no espaço Bazar.

Curtiram a festa, os quatro juntos. Não tinham dinheiro para beber, o jeito foi colocar dois litros de vinho dentro da calça folgada de André. Com quase dois metros de altura, daria para esconder até um boi. Alguns minutos passaram fazendo companhia ao rapaz que cedeu os ingressos, ficaram impressionados com a presença do artista próximo do grupo. Logo se despediram e foram para outro lugar.

Bebendo vinho, pulando, gritando, curtindo a vibe, a energia da noite até que a última banda tocou. Já tinha ultrapassado a meia noite e nenhum dos quatro tinha prestado atenção ao horário do último ônibus de volta para casa. A festa acabou e muita gente ainda ficou no lugar, conversando, fumando cigarro, bebendo, paquerando. Quando resolveram ir embora, que deram conta da realidade, já era 1 hora da manhã e o pânico tomou conta dos amigos.

– Não tem mais ônibus, o último seria 11h40, disse Talles.

– E agora? Disse Jeff.

– Vamos ligar para meu pai, João sugeriu.

– Não, tirar família da cama essa hora para buscar a gente que está em festa! disse André, o mais sereno.

Foram andando em direção ao ponto, no sentido Largo dos Mares. O breu, o silêncio, a energia da noite, os mendigos, e sentaram no ponto. Só os quatro e mais ninguém. Jeff questionou:

– Vamos ficar aqui esperando ônibus essa hora?

– Vamos fazer o quê? Não temos dinheiro! disse Talles. Vamos esperar amanhecer aqui e no primeiro ônibus vamos embora.

Jeff se assustou com a idéia, João e André arregalaram os olhos. Observaram ao redor e nada havia de ameaçador. Só a escuridão, postes quebrados, a fedentina da rua, os mendigos. Jeff deu uma idéia:

– Vamos para casa andando, é melhor que ficar parado em um único lugar, correndo risco de ser assaltado. Aqui é muito perigoso, muitos marginais usando drogas. Vamos andando e se passar um pernoitão no meio do caminho a gente pega.

Todos pararam, pensaram e questionaram a distância. Mas todos concordaram em não ficar parado ali, naquele ponto deserto, em um bairro perigoso e foram andando no sentido São Joaquim. A discussão no caminho foi o trajeto para chegar até a ladeira do Cabula. Ir pelo Comércio seria muito perigoso, passar o túnel, Aquidabã e Sete Portas então seria pior. Jeff sabia um itinerário que cortava caminho e já saía na Baixa de Quintas. Seguiram todos o caminho.

Na frente da feira, quatro homens jogando dominó começaram a discutir. Um deles puxou uma garrafa e atirou na cabeça de seu rival que caiu no chão e a confusão começou. A gritaria e agressões fizeram os amigos terem medo da noite. Apressaram os passos e subiram uma ladeira que dá acesso ao Barbalho, já saindo na Estrada da Rainha.

Andaram pela Estrada da Rainha e lá na frente Jeff avistou dois homens sentados no canto da rua, em um lugar escuro, só se via o reflexo e a fumaça do cigarro. Os dois levantaram-se, um deles atravessou a rua, Jeff chamou atenção dos amigos:

– prestem atenção. Ali tem dois caras e um deles está atravessando a rua.

– André, grande, disse: que nada, maluco. Aqui tem quatro, lá só tem dois.

– Calma, André, a gente não pode contra arma. Uma hora dessas sentado na rua, bem no escuro, só pode ser marginal.

Saíram do canto da rua e começaram a andar no meio da pista, idéia de João. Chegando perto, os homens, com olhares nervosos deixaram passar os amigos, só disseram uma piada: “Cuidado com a área do Zoto!” Foram andando sem olhar para trás e dobraram a esquina da Baixa de Quintas. Logo em seguida já estavam nos Dois Leões sentido Rótula do Abacaxi. No meio do caminho, os quatro apreensivos, com medo, deram vontade de fumar para acalmar os ânimos depois do susto que levaram. O cigarro tinha acabado e só restava 50 centavos no bolso de Talles.

No meio do caminho, um bar, com apenas uma janela aberta e alguns bêbados ingerindo cachaça. Todos foram juntos ao bar, na chegada a recepção; olhares famintos, sangue nos olhos, o semblante possuído, os gestos lentos. Pediram um único cigarro e continuaram a caminhada. Dividiram um cigarro para os quatro. Cada um dava uma tragada. Chegaram à Rótula do Abacaxi e finalmente na tão esperada ladeira do Cabula. Subiram a ladeira, já na Avenida Silveira Martins viram passar um ônibus da manutenção de alguma empresa de transporte coletivo. Talles gritou, o motorista parou e deu carona para os quatro amigos até a entrada da Mata Escura, a alguns metros do Conjunto dos Pássaros. Chegaram em casa, e tudo que passou foi motivo de risos para querer mais. Deram risadas, apertaram as mãos e disseram: outro dia tem mais.